sábado, 29 de março de 2014

Violência policial é herança da ditadura: ‘Pau-de-arara está onde sempre esteve'

Por Vasconcelo Quadros - iG São Paulo |

Excesso de violência, altos índices de corrupção nas polícias e o corporativismo, segundo especialistas, andam juntos e impedem mudanças estruturais na segurança pública

As altas taxas de violência policial (5.3 pessoas mortas por dia ou 1.890 casos no ano passado), os homicídios entre a população (20.4 por 100 mil habitantes) e o despreparo da polícia militar no controle das manifestações do ano passado denunciam que ainda há resquícios da ditadura no sistema de segurança do país.
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“Estamos vivendo o mais longo período de democracia da história, mas ainda convivemos com resíduos autoritários inspirados na antiga Lei de Segurança Nacional. É o fenômeno da militarização e da doutrina do ‘inimigo comum que precisa ser combatido”, conforme a visão das Forças Armadas. Esse conceito permanece e é incompatível em tempos de paz”, diz o procurador da República, Marlon Weichert.
Alberto Wu/Futura Press
Alto número de civis mortos em supostos confrontos é um dos sintomas da herança da ditadura

O procurador vê relação entre as dificuldades do Brasil em esclarecer ou punir os crimes da ditadura e os altos índices de violência policial e social. Na opinião de Weichert, a máquina da segurança pública, especialmente a das polícias militares estaduais, herdou práticas autoritárias e não se reciclou.
Os exagerados números de civis mortos em supostos confrontos com tropas de elite – fenômeno mais acentuado no Rio de Janeiro e em São Paulo – é um dos sintomas da herança.
“Essa é uma demanda e um desafio que o poder civil ainda não enfrentou”, diz ele, apontando para o anacrônico sistema de investigação e as dificuldades de unificação das polícias. A investigação policial, segundo ele, ainda está impregnada por excessos de violência, embora ressalve que essa matriz tenha raízes no período da escravidão. “A violência é anterior a 1964. O que mudou foi o alvo”.
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“O pau-de-arara está onde sempre esteve”, sustenta o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, convicto de que as práticas de tortura ainda fazem parte da metodologia das polícias estaduais e estão presentes em alguns estabelecimentos de segurança. A matança de criminosos comuns em supostos confrontos e o sumiço de corpos – como o Caso Amarildo, no Rio – são exemplos dos resíduos autoritários. Bastos afirma que a política de segurança ficou com um forte conteúdo de classes, priorizando os de baixa renda como alvo preferencial.
Palco da repressão mais brutal contra as organizações da esquerda armada, São Paulo foi também ponto emblemático da militarização, imposto com a imediata incorporação e controle da PM pelas Forças Armadas logo depois do golpe. Em 1966, quando ainda recebia a denominação de Força Pública do Estado de São Paulo, a PM foi comandada pelo então coronel João Batista de Figueiredo, o último dos generais-presidentes antes do início da redemocratização do País, e foi largamente usada como extensão dos órgãos de repressão da ditadura.
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No início dos anos de 1970, a incorporação da doutrina militar se expandiria de tal forma que a PM paulista – para atender às exigências da ditadura – criaria a famosa Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), considerada como uma das corporações mais violentas do mundo. A ROTA surgiu para combater os assaltos a banco praticados pela esquerda armada, se especializou na busca do confronto e manteria essa doutrina no trato com delinquentes comuns.
Heranças da ditadura, o excesso de violência, os altos índices de corrupção nas polícias e o corporativismo, segundo os especialistas, andam juntos e impedem mudanças estruturais na segurança pública. Um dos retratos mais fiéis do anacronismo é a figura do inquérito policial – uma peça de investigação de pouca eficácia no combate à impunidade e muitas vezes anulada por uma segunda etapa, a judicial, que refaz todo o trabalho antes do julgamento.
Outra corporação criada para reprimir adversários políticos do regime militar, a Polícia Federal, livrou-se da herança autoritária eliminando de suas atribuições a censura e adotando métodos democráticos de investigação, baseados na inteligência, na capacitação de seus agentes e incorporando a tecnologia como método.
No início dos anos de 2000, depois de cortar na própria carne reprimindo os desvios internos, a PF virou referência no combate à corrupção e uma “ilha” entre as polícias brasileiras em termos de investigação e inteligência. As polícias civil e militar ficaram aferradas a métodos antigos e profundamente distantes uma da outra, o que, pelo corporativismo, atualmente conspira contra as propostas de unificação que tramitam no Congresso Nacional. Raramente as duas corporações cooperam uma com a outra.
“Segurança pública se faz com integração, inteligência e corregedoria”, diz Thomaz Bastos, que durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o superior hierárquico da Polícia Federal e definiu o combate a corrupção nos órgãos oficiais como prioridade. Nessa época, nem o irmão do ex-presidente, Genival Inácio da Silva, o Vavá, suspeito de fazer lobby, escapou da devassa.
O processo de reciclagem e revisão pelo qual a PF passou ainda está longe de chegar às polícias estaduais. O procurador Marlon Weichert ressalva que os problemas não surgiram com o golpe, mas diz ser inegável que os resíduos autoritários e o peso dos anos de chumbo estão entre os principais obstáculos para modernizar e adequar o sistema de segurança ao ambiente democrático.
“Mudar esse quadro é o desafio. Sem uma determinação firme, esse sistema ainda vai durar décadas. O Brasil é um dos poucos países da América Latina em que os crimes aumentaram após a ditadura”, diz ele. Num sentido oposto, segundo ele, países que passaram por ditaduras e acertaram contas com o passado através de comissões da verdade, viraram a página, melhoraram seus sistemas judiciais e reduziram a violência.
Um dos caminhos é a esperada revisão da Lei da Anistia de 1979. As denúncias do Ministério Público Federal contra torturadores pelo crime de sequestro e as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro, segundo Weichert, podem levar o Supremo Tribunal Federal a adotar uma nova interpretação. Márcio Thomaz Bastos acha que é necessário tratar o tema com “cuidado”, mas lembra que outros países fizeram a revisão da anistia e livraram seus sistemas de segurança e judicial dos resquícios autoritários.

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