Gilmar Mendes, Passarinho, terrorismo e tortura (Pedro do Coutto - Tribuna da Imprensa)
As surpreendentes declarações do ministro Gilmar Mendes contra a ministra Dilma Rousseff - "O Globo" de 4/11 - deixam o presidente do Supremo Tribunal Federal em posição desconfortável no episódio, sobretudo em face de sua falta de lógica. Incrível que um membro da Corte Suprema deixe-se levar pela emoção e por um engajamento intelectual completamente fora de quadro. O que disse a ministra-chefe da Casa Civil? Apenas que considera a tortura um crime imprescritível.
Ela fez a afirmação num contexto definido: a absurda defesa que a Advocacia Geral da União assumiu ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não se trata, para início de conversa, de saber se aquele militar que serviu no DOI-Codi de São Paulo é culpado ou se está abrangido pela Lei de Anistia, Lei 6.683, de agosto de 79, sancionada pelo presidente João Figueiredo. Trata-se da improcedência da defesa pela AGU. Acusado por uma família paulista de tortura e seqüestro de seus filhos no passado, cabe a ele, exclusivamente a ele, Brilhante Ustra, se defender.
A ação é de foro privado. Não há explicação para a Advocacia Geral da União assumir a causa. Recebeu procuração do coronel? Não é possível. Contra tal atitude foi que a ministra Dilma se insurgiu. O argumento de que a tortura é prescritível ou não é menos relevante no caso específico. O argumento forte, este sim, é de que o poder público está assumindo uma defesa particular.
Falta lógica. O advogado geral da União, José Tofoli, deveria ter contido a iniciativa de integrantes da AGU a ele portanto subordinados. Não o fez. O próprio ministro da Justiça, Tarso Genro, condenou igualmente a postura da AGU. Tudo isso nada tem a ver com prescrição.
Aí entrou em cena o ministro Gilmar Mendes. Sem ser citado, ou chamado a debate, volta-se contra Dilma Rousseff, candidata do presidente Lula à sucessão de 2010, e diz que o terrorismo também é imprescritível. O que significam suas palavras? Usou a expressão "também". Logo, no fundo, acha que, de fato, a tortura não prescreve, da mesma forma que o terror ou a luta clandestina.
Ele desejou atingir a ministra, evocando o passado e a ação que desenvolveu no episódio do ataque à residência da sra. Ana Caprilione, em Santa Teresa, ao lado de um homem que se chamava ou chama Massfune, que desapareceu de cena ou da vida. Mas esta questão nada tem a ver com a opinião da chefe da Casa Civil. Dilma Rousseff não está sendo processada por ninguém. Mas Carlos Alberto Brilhante Ustra está. Uma família se uniu e se reuniu contra ele. Seu processo tramita na Justiça de São Paulo. Trata-se assim de algo material, concreto.
Nada existe contra Dilma Rousseff. A diferença de iniciativa e de processo é essencial no campo do Direito. O ministro Gilmar Mendes não pode desconhecer tal diferença. Ele é um homem da ciência jurídica. Sua responsabilidade é enorme. Sobretudo, porque não é apenas um ministro do STF, é o chefe do Poder Judiciário. Além do mais, uma coisa não elimina a outra. Alguém pode ser torturador, outro terrorista. O fato de alguém ter praticado terrorismo não elimina o fato de alguém ter praticado tortura e seqüestro.
Admitir o contrário é conduzir o debate moral e ético a porta de bares comuns. Pois é assim, inclusive, que torcedores discutem nas esquinas e nas calçadas episódios próprios dos jogos de futebol e a atuação de jogadores e árbitros. Este nível não pode ser o do presidente do Supremo.
Nem o da ministra Dilma Rousseff. Tampouco o do cenário político do País. No meio de tal questão, com um artigo no "Jornal do Brasil" de anteontem, emerge o ex-senador Jarbas Passarinho. Um dos signatários e incentivadores do terrível Ato Institucional Número 5, ex-ministro da Educação, do Trabalho e também da Previdência Social, sustenta, no contexto da tortura, que militares cumpriram seu dever combatendo os guerrilheiros e a luta clandestina. Ninguém está discutindo que os militares cumpram seu dever.
Inclusive o apelo minoritário à luta armada constituiu grave erro, principalmente porque deslocou o debate democrático para o plano do confronto impossível e à falta de solução. Cumpriram seus deveres. Mas entre tais deveres não se inclui obviamente a tortura. Passarinho refere-se à agressão armada comunista. Tudo bem. A questão não é esta. O tema é a tortura. O que de mais hediondo existe na face da Terra, como certa vez acentuou Nelson Rodrigues, numa entrevista a Villas-Bôas Corrêa e Antônio Carbone, publicada em "O Estado de S. Paulo".
Nelson Rodrigues era absolutamente insuspeito para condenar a tortura, já que nas páginas de "O Globo", na série "As confissões", sempre defendeu o regime político-militar de 64. Exagerou, inclusive. Tinha como alvos prediletos o pensador cristão Alceu de Amoroso Lima e dom Helder Câmara. Mas condenou a tortura como método repressor ou inquisidor. É verdade que reagiu assim depois da prisão de um de seus filhos.
Mas esta é outra questão. Nada tem com o compromisso moral que todos devem manter em relação à tortura. Seja ela no Brasil, na Rússia, em Cuba, em Guantánamo, no Iraque. Os torturadores podem até não ser condenados e se beneficiar da anistia. Sob o ângulo legal. Mas não sob o prisma moral. Neste caso, ela é imprescritível no tribunal da consciência humana.
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